Ação educativa como gesto de aproximação
Em Janeiro de 2020 eu fui convidado pelo BDMG Cultural e Coletivo Micrópolis a produzir um texto crítico sobre o primeiro ciclo de atividades do educativo do BDMG. A pergunta que orientou o ciclo foi “Como as imagens podem contribuir para produzir vizinhanças“. Minha estratégia foi compartilhar algumas inquietações que pudessem contribuir para pensarmos todas as distâncias que constituem o que estamos vivendo agora em termos de vida na cidade e pandemia. O BDMG optou por não publicar o texto encomendado, e eu tomo a liberdade de compartilhar a reflexão aqui no meu site.
Ação educativa como gesto de aproximação
Em proposta apresentada ao BDMG Cultural pelo Coletivo Micrópolis, surge a iniciativa de um encontro à ideia de vizinhança, em que o gesto educativo aparece como movimento de aproximação e escuta, pesquisa e produção, colocada em prática em um ciclo de ações diversificadas. Fui convidado a acompanhar todo esse processo, desde a sua concepção até a execução, e apresentar, ao final, uma reflexão crítica sobre a ideia de vizinhança e a construção de imagens a partir dela. No meio disso tudo, eu e muitos de nós entramos em quarentena em função da pandemia de Covid-19. A quarentena, que equivocadamente tem sido tratada como isolamento ou distanciamento “social”, traz outras camadas para esta reflexão e para a ideia do que chamamos e/ou conhecemos como vizinhança.
Nosso isolamento não é social, cabe aqui repetir. É físico, de contato. Nele, não vivenciamos restrições de comunicação, mas seguimos hiperconectados, trocando mensagens com imagens e textos. Vejo dados apontando um aumento de quase 50% no acesso a sites de notícias no mundo todo. Além disso, incluímos em nossa rotina o uso frequente de ferramentas de videoconferência. A vida nas redes sociais, que já era extremamente dependente de imagens, aumentou e ganhou mais complexidade. Fora das telas, a vida urbana também sofre uma transformação radical: para uma parte da população permanecer em casa, saindo somente para acessar serviços essenciais, outra se mantém trabalhando e em constante exposição ao risco de contaminação.
As distâncias tradicionais, medidas por metros e quilômetros, estão ainda mais diluídas. Ideias como a de localização, acesso, endereço, território e cidade já vinham passando por um momento de ressignificação. Os marcos anteriores, como o surgimento das ferrovias, dos automóveis e da malha rodoviária, mais recentemente com a internet, têm agora, um novo e importante balizador: a pandemia. Uma questão de saúde global, que nos obriga a repensar o sentido da vizinhança a partir do distanciamento.
A partir da vizinhança enquanto conceito – e seu significado na dimensão da cidade –, eu gostaria de compartilhar algumas inquietações, que talvez sirvam de contribuição para pensarmos todas as distâncias que constituem o que estamos vivendo agora. Enquanto o programa educativo do BDMG Cultural nos coloca a questão “Como as imagens podem contribuir para produzir vizinhanças?”, a proximidade entre as pessoas que, em tempos de pandemia, nunca esteve tão ameaçada e valorizada, traz uma nova pergunta:
Como as vizinhanças produzem imagens?
Para pensarmos mais profundamente sobre vizinhança, em relação com as imagens, talvez seja importante voltar um pouco na história da nossa cidade. A mudança da capital mineira para Belo Horizonte, no final do século XIX, não promoveu apenas uma nova relação de proximidade entre as pessoas, mas impôs um novo conjunto de imagens e significados, atrelados às expectativas de que, a partir de uma nova condição urbana de vida, um novo cidadão, moderno e cosmopolita, se constituiria.
Naquele momento, emergiram críticas ao excesso de exposição que o traçado da cidade proporcionava aos habitantes. As pessoas chegavam a se incomodar por serem vistas de esquina a esquina nas ruas e avenidas extremamente retas e largas (fig. 1). Essa condição nova e perturbadora indicava que a proximidade entre as coisas e as pessoas estava por se reinventar, o que me lembra Carlos Drummond de Andrade, em 1968, quando criou com sua poesia uma imagem do que seria essa relação entre sujeitos e espaço urbano:
Por que ruas tão largas?
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho.
Não sei andar na vastidão simétrica
implacável.
Cidade grande é isso?
Cidades são passagens sinuosas
de esconde- esconde
em que as casas aparecem-desaparecem
quando bem entendem
e todo mundo acha normal.
Aqui tudo é exposto
evidente
cintilante. Aqui
obrigam-me a nascer de novo, desarmado.Carlos Drummond de Andrade, “Boitempo”, 1968.
O escritor Daniel Carvalho chamou Belo Horizonte de “capital dos burocratas descontentes”, em 1905. Ele acompanhava uma transformação comum a outras cidades brasileiras, que viviam um conflito entre sua vocação “careta”, e a experimentação, criação e conflitos que consolidavam a riqueza da vida urbana. No caso de Belo Horizonte, a cidade da “vastidão simétrica implacável”, como Drummond definiu em sua poesia, também permitiu que houvesse vida nos espaços públicos. Mesmo com o planejamento rigoroso do espaço e da vida em sociedade, as distâncias entre as coisas e as pessoas continuaram sendo constantemente ressiginificadas. As imagens de proximidade e intimidade que nos tocam, têm sido construídas pelas artes, pela fotografia, literatura, pintura, música ou teatro. A nova cidade, com oferta de cinemas e jardins, para os cronistas, era a mesma cidade fria e sem identidade para os que ficaram em Ouro Preto e se opuseram à mudança. A capital Mineira permaneceria, por muito tempo, como o anúncio do novo, mas também da persistência do estranhamento.
As vivências na nova capital, ao longo das décadas, também permitiram a criação de afetos e de novas relações a partir da experiência do trânsito por essas ruas largas. E é exatamente a partir da coleta de fragmentos dessa cidade, que o fotógrafo Felipe Chimicatti constrói o seu trabalho. Trabalho esse que norteou parte das atividades do primeiro ciclo, realizado entre fevereiro e abril de 2020.
A partir das reflexões e conexões criadas com as imagens da exposição “Avenida Amazonas”, o ciclo teve sequência com a realização de uma oficina baseada no trabalho do artista. Também foram gravados podcasts com outros três artistas e produtores locais, que trouxeram uma nova perspectiva, a partir de seus trabalhos, para uma reflexão sobre a contribuição das imagens na produção de vizinhanças.
Na exposição de Felipe Chimicatti, o gesto inicial foi a partilha da arqueologia em uma das avenidas mais importantes da cidade, o que nos permitiu pensar no caminhar e no campo de visão de um caminhante anônimo.São registros fotográficos de um percurso comum, ordenados dentro de um lugar de percepção da complexidade do mundo, que são as galerias de arte e espaços culturais. A exposição é um gesto de aproximação, que nos permite estabelecer uma relação com o que é semelhante, a partir das nossas próprias memórias, organizadas por relações afetivas. Uma vizinhança formada por imagens.
Essa arqueologia da Avenida Amazonas, que inspirou a oficina realizada pelo Coletivo Mofo, nos permitiu coletar e reordenar as imagens que nos cercam, recombinando-as em narrativas. Quem vive a experiência do centro sabe que, às vezes, o que vemos é tão duro e concreto que parece que o espaço permite esse tipo de abstração. Nesse caso, a proposta do coletivo foi fazer um percurso relacionado com a percepção do espaço e as relações subjetivas nele constituídas.
O que você vê quando passa pelos mesmos lugares? Quais memórias você recupera a partir da experiência cotidiana? A sugestão do coletivo Mofo foi que cada participante reordenasse o espaço como um construtor, redesenhando a cidade como um arquiteto, refazendo as distâncias entre o que é visto e o que é apreendido. O exercício de escavar imagens da rua Aarão Reis, coletá-las e organizar em uma publicação repetiu um pouco de tudo que já fazemos no dia a dia da relação com a cidade. Fotografias de celular, percursos, pausas, observação. A elaboração de fanzines foi, sem dúvidas, a materialização disso tudo.
Essa reflexão me transporta para o trabalho do geógrafo humanista Yi-Fu Tuan, que em 1974 publicou o livro “Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente”, enquanto o mundo se atentava para as possibilidades do entendimento da organização da vida nos espaços. Topofilia, que remete aos sentimentos de apego das pessoas ao ambiente natural ou construído, é fundamental no processo de entendimento das distâncias onde vivemos, entre nós e os outros.
Entre anos 1980 e 1990, a globalização exercia uma pressão grande na maneira como as sociedades se organizavam. Dos artistas, exigia-se um entendimento mais apurado de identidade e nacionalidade e, consequentemente, do espaço e/ou vizinhança. A partir dos anos 2000, a cultura do consumo e da desvalorização das relações parecia a única aceita pelas instituições tradicionais. Terras, fronteiras, migração, deslocamento e pertencimento, tornaram-se temas recorrentes em trabalhos artísticos, tensionando a naturalização da imagem do sujeito do século XX como o indivíduo globalizado.
As relações de família, as práticas sociais, as memórias associadas a territórios periféricos, reforçam que a escala da vizinhança também pode ser compreendida como uma estratégia de resistência cultural no século XXI. Em meio a consolidação dos espaços virtuais que reconfiguram as imagens de vizinhança, a arte nos permite recuperar uma potência crítica que possibilita ao sujeito globalizado reencontrar sua própria identidade a partir da aproximação, do reconhecimento, da memória. Permite também enfrentar os desafios do viver junto, de permitir olhar para territórios e formas de vida em comunidades dadas como inexistentes ou deliberadamente ignoradas.
A série de entrevistas que acompanha o ciclo de atividades nos dá melhores respostas ao desafio contemporâneo de lidar com as crises que o capitalismo nos reserva, retomando elementos de identidades e narrativas que resistem ao tempo, no espaço. A conversa com a artista Aline Motta sobre sua pesquisa revela como nossas histórias são fundamentais para pensar criticamente a organização das imagens que herdamos, e qual seria a reordenação possível.
A busca pela história de sua avó e o encontro com a líder comunitária Cláudia Mamede provam que não há distâncias intransponíveis entre nossa memória e nossa história. Da mesma maneira, o projeto Retratistas do Morro e a produtora Filmes de Plástico evidenciam que as relações de identidade podem ser traduzidas em imagens, e que imagens e memória também constituem vizinhança. A cena inicial de “No Coração do mundo”, gravado no bairro Jardim Laguna, na periferia de Contagem, traz uma imagem que pouco faz sentido sem a ideia de vizinhança, sem a possibilidade de imaginar sua dimensão comunitária. A Pracinha do Laguna não é só uma paisagem estática da cidade, é um elemento que aparece diferente a cada experiência recuperada.
Nesse processo de apreensão e reordenação do espaço, o gesto educativo baseado na liberdade e no fazer junto promove novas possibilidades de aproximação entre projetos e espaços culturais, indivíduos e comunidades. As imagens constituem as experiências na cidade que nos aproximam, mesmo em tempo de pandemia. As imagens nos conectam com nossas memórias e nos transportam para temporalidades diferentes. Quando criadas fora dos circuitos elitizados, recuperam o sentido da existência de muitos de nós. Entendo que as imagens criam, sim, vizinhanças. E a ação educativa como gesto de aproximação também permite que as vizinhanças criem imagens, representem a própria noção de comunidade baseada no pertencimento, na identidade, no bem comum.